O tempo estava agressivo mas ele não tinha medo, era um verdadeiro Lobo do Mar, sempre respeitou o caminho das ondas e a sua maré, mas hoje estava verdadeiramente agreste. O seu cuidado era a dobrar bem como a sua teimosia, unidos pela profissão e gosto pelo Mar.
Pescarias do passado finalmente reunidas no presente, da sua mente. Todos os dias diferentes no seu todo, mas sempre com esperança e pensamento positivo.
A trinta e seis milhas da costa, Jaime chega ao destino no seu semi cabinado " Jaímito " de cinco metros e cinquenta. Um barco de madeira que apesar de ser um velho modelo ainda dava para o gasto, assim pensava Jaime...
- Jaímito, vamos apanhar uma boa teca de peixe, que dizes velho?
Jaime falava sempre com o barco, era o seu fiel amigo e companheiro. Muitas experiências vividas juntos, mas também muitas dificuldades passadas, a vida no Mar nunca foi fácil.
Jaime lançava agora a ancora e a bóia para dentro de água de forma a imobilizar o barco no sentido da corrente. Ajoelhado na proa, rezava a Deus pedindo que a pescaria fosse boa e que tudo corresse bem.
- Jaímito, é hoje, é hoje!
O pescador começava agora a engodar com sardinha de modo a atrair o peixe, de seguida sacava das canas de pesca e começava a colocar as montagens no fio.
Foi feito o primeiro lançamento ao Mar.
- Sabes Jaímito, se não fosses tu não tinha ninguém. Quando não estou contigo sinto-me muito só. Ontem fui à praça meter-me com a Joaquina, mas ela nem me ligou nenhuma, deve ser por causa daquele tipo novo que lá anda.
Jaime era um quarentão sem mulher ou filhos, a vida nunca lhe proporcionou nada além da pesca, desde pequeno que o pai lhe meteu o trabalho nas mãos e levava-o para o Mar, a mãe tratava de vender o peixe na praça. Era o sustento da família.
Apesar de atrevido e humilde, nenhuma experiência tinha com as mulheres, era um campo novo em aberto, mas talvez se devesse há falta de tempo para dialogar e viver fora da pesca. Seu pai era muito rígido na profissão e não gostava que o filho perdesse tempo com coisas de miúdos.
O mundo de Jaime, era fechado e duro.
- Elá, que grande safanão. Este é grande!
Jaime apanhava belos exemplares da mesma maneira que o pai lhe ensinara. Alfredo era o seu nome e além de pescador, era alcoólico.
Começou a beber assim que iniciou a vida na pesca, bebia logo de manhã para enfrentar o frio e esquecer o que se passava na noite anterior à saída para o Mar. Havia dias em que o sustento era pouco e aliviava a sua frustração através de actos de violência em Alice, sua esposa e mãe de Jaime.
A sua violência passou de alguns dias, para todos os dias...
- O dia está a correr bem, Jaimito. A papá hoje vai ficar orgulhoso de nós.
Alfredo não estudou em nenhuma escola, sabia contar e mexer no dinheiro mas através de seus colegas de pesca que lhe ensinaram. Nunca frequentou uma escola pois veio de uma família pobre e sem recursos, mas desde cedo a sua agressividade dava-lhe um lugar longe da comunidade.
Mas no fundo não era esse o caminho que ele queria para Jaime, conseguiu com que o seu filho tirasse o ensino básico.
- A tarde está a chegar ao fim, Jaimito, temos que ir embora, além disso já enchemos a caixa de peixe, e do bom.
A mamã até se vai passar com tanto peixe para amanhar, ai se vai!
Alice, era uma mãe muito dedicada, protegia Jaime da violência do seu marido e por consequência, era ela que sofria na pele. Ao contrário de Alfredo, Alice tinha alguns estudos e adorava ler, coisa que o seu marido achava um desperdício de tempo.
- Amanhã vamos fazer muito dinheiro Jaimito, olha, vou deixar algum de parte para te pintar e vais ser o barco mais elegante de todos.
De facto, Jaime tinha a caixa do barco cheia de pescado, fora um dia em grande apesar do mau tempo, mas este por vezes é benéfico. Depois de Jaime arrumar as coisas para começar a içar a âncora, fez-se um raio de luz.
Quase como agraciado pela luz quente naquele momento, Jaime saca de um cigarro, acende-o e de seguida, tira uma garrafa de vinho tinto e abre-a dando um golo profundo. Agora sentado, contempla o brilho quente que penetra na sua pele fria, pálida, e fecha os olhos...
Jaime levanta-se e deixa-se cair para dentro de água, de súbito, este vê-se envolvido numa espécie de algas marinhas que o puxam com força para baixo e o vão sufocando ao mesmo tempo. A luz vai desaparecendo afastando-se cada vez mais do barco.
Jaime...Jaime...Vem...Vem...Mais perto...
Duas vozes um pouco turvas fazem-se agora ouvir, tristes, angustiadas, em sofrimento permanente.
Junta-te a nós...Vem...Filho..Vem...
Jaime chegou ao destino, não se via nada e ainda se encontrava apertado e sufocado, mas parado. De repente um foco de luz iluminava a água em tom escuro, esverdeado, baço.
Finalmente...Sim...Chegaste a nós...Querido...
Por baixo do pés de Jaime, duas figuras aproximavam-se cada vez mais nítidas apontando as mãos abertas para cima, como quem quer agarrar alguém.
ÉS TU, ÉS TU, JAMAIS PARTIRÁS IMUNE...
As figuras que Jaime vê são os pais, desfigurados, com correntes quebradas nos pulsos tentando agarrá-lo para o puxar. Jaime entra em pânico tentando soltar-se das algas para puder subir e escapar.
VAIS APODRECER AQUI CONNOSCO...JAMAIS PARTIRÁS...
As mãos de Alice e Alfredo agarram agora Jaime pelos pés, puxam-no para baixo começando a mordê-lo nas pernas, trincando e rasgando a carne de Jaime, como se de um grupo de piranhas se tratasse. Mas os gritos de Jaime não se ouvem lá em cima, nada o poderá ajudar...
- Socorro, socorr...soc...Jaimito...acabei de ter um pesadelo, porra foi só fechar os olhos por um momento e...porque não me acordaste, hein??
Vamos mas é embora...isso, vamos embora...
Jaime bebe mais um trago de vinho, ainda maior que o último que tinha tomado, acende um cigarro puxando com mais força o fumo para dentro dos seus pulmões e por fim soltando-o depois, com alívio.
Agora puxa a bóia e a ancora, mete-as a bordo e segue caminho para o porto de abrigo.
- Já se vê as luzes do porto Funchal, Jaimito, já estamos a chegar. O que terá a mãe feito para o jantar? Espero que seja carne.
Jaime chegava agora ao porto do Funchal, as gaivotas pairavam por cima do barco, famintas e curiosas como sempre. Alguns pescadores acenavam em gesto de saudação como é hábito entre eles.
Depois de amarrar o barco, Jaime descarrega o peixe numa caixa e mete-o num carrinho de mão dirigindo-se até ao seu triciclo, uma Vespa de caixa fechada.
- Boa noite Tózé, hoje tás ao serviço?
- É verdade, Jaime, hoje calhou-me a mim. Que trazes aí?
- Olha, apanhei uma teca hoje, até me dói os braços.
- Há valente! Foste ao norte?
- Sim, a vinte e três milhas.
- Deves ter apanhado mar furioso!
- Apanhei algum, mas sabes como é, ou vai ou racha, e o Jaimito está aí para durar.
- Pois, olha lá uma coisa, que é feito do teu pai, o Alfredo?
- Porque perguntas?
- Já não o vejo há uns dois meses, ele está bem? - Jaime fez uma pausa com olhos fixos no tio - Desde quando deu para te meteres na vida dos outros?
- Desculpa, Jaime, só perguntei por perguntar.
- Mete-te mas é na tua vida, até amanhã.
Tózé, ficou com cara de mal amado e ao mesmo tempo intrigado, não era costume Jaime responder naquele tom ao tio e este começou a questionar-se a si próprio o porquê daquela revolta. Tózé era o irmão de Alice e este já algum tempo que não sabia dela, já para não falar dos boatos sobre a vida familiar da irmã em que Alfredo lhe batia.
Mas agora decidiu averiguar, porque, instinto ou não, aquele olhar de Jaime e a sua resposta, foram decisivos.
Jaime metera a caixa do peixe na Vespa e seguira caminho para casa.
Tózé fechou o armazém, pegou nas chaves do carro e seguiu Jaime.
- Raios parta o homem, tinha que meter o nariz onde não é chamado...tio, pois sim...
Alice sempre fizera tudo para que, Tózé, não soubesse dos maus tratos que Alfredo lhe dava pois se soubesse, poderia matá-lo. Mas ela sabia que não poderia durar para sempre.
- Mãe, pai, cheguei. Vou só meter o peixe na arca e já cá venho para contar como foi o meu dia.
Nem mãe, nem pai, responderam.
Tózé aproxima-se da casa, abre a porta da rua que estava encostada, pois Jaime estava carregado de peixe e nem tivera tempo de a fechar. Após ter entrado notou logo no cheiro nauseabundo que pairava no ar, era horrível, ao que teve que tapar o nariz com a sua própria mão.
Ao entrar na sala, reparou no sofá pequeno que estava à sua frente, mas de costas para ele, via o que parecia ser alguém. A proximidade não deixara dúvidas, era Alfredo com a sua cabeça completamente partida, quase que desfeita, todo ensanguentado com um martelo no seu colo.
Tózé, afastava-se lentamente do corpo olhando em redor até que viu, a um canto, a sua irmã Alice, sentada numa cadeira imóvel como uma estátua.
- Irmã, o que é isto, o que aconteceu aqui?? Fala comigo, fala.
Alice, desde a noite a que assistira o filho a matar o pai à martelada, que não dizia nada, não se mexia, era Jaime que tratava dela, o trauma foi de tal maneira grande que a deixou imóvel até aquele momento.
Essa fora a última noite em que Alfredo lhe tocara, Jaime tinha então atingido o ponto de ebulição.
- Eu vou-te tirar daqui irmã, vamos sair já daqui.
Enquanto Tózé tentava levantar Alice, Jaime vinha sorrateiro pela sala, pegou no martelo que estava no colo do pai, ao aproximar-se, Alice tenta rumorejar algo ao irmão, mas era tarde demais. O sobrinho martelava, martelava na cabeça do tio até este cair inconsciente no chão, e morrera ali mesmo.
Alice, levantou-se e dirigiu-se à cozinha.
- Mãe, onde vais, a culpa não foi minha, ele não tinha nada que cá vir, estava tudo controlado...
Alice abriu a gaveta da cozinha e tirou de lá uma faca, de seguida, espetou-a no seu coração. Não aguentou mais terminando assim com a sua vida.
Jaime deixou cair o martelo no chão, ajoelhou-se e abraçou sua mãe com força, chorou durante horas agarrado a Alice.
A meio da noite, Jaime entrou na sua Vespa e dirigiu-se ao porto de abrigo, levava consigo a mais, um jerrican de cinco litros cheio de gasolina para o barco, mas não para abastece-lo.
- Vamos embora Jaimito, vamos fazer juntos uma última viagem.
Jaime navegava agora para Norte onde o mar estava revoltante, a noite estava ainda mais fria e nublada, as luzes do porto afastavam-se lentamente enquanto o vento batia na face. Um cigarro atrás de outro, um gole de vinho atrás de outro, e assim navegava durante algumas horas.
- Jaimito...chegámos, está na hora...
Jaime pega no jerrican e começa a espalhar a gasolina pelo interior do barco, da proa à popa.
- Sabes, foste o meu melhor amigo, Jaimito...adeus.
O filho que matou os pais e o tio, deita agora fogo ao barco e lança-se ao mar, emergindo, deitando todo o ar dos seu pulmões para fora, as suas últimas bolhas de ar, vendo a luz do fogo queimando Jaimito, desvanecendo...
FIM